O TERCEIRO PASSO NA VISÃO DE UM COMPANHEIRO

Terceiro Passo:
“Decidimos entregar nossa vontade e nossas vidas aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos”.

Primeiramente gostaria de colocar que o Terceiro Passo é o ponto de agrupamento de todas as pessoas em A.A. A expressão nele contida “Deus como nós O concebíamos” abre as portas para todas as pessoas de todas as religiões ou mesmo para as pessoas agnósticas ou atéias. Se assim não fosse, mais da metade dos membros de A.A. que dizem ter tido algum problema com Deus ou com as religiões estariam condenados à morte irremediavelmente. Praticamente esse passo antecipou a terceira Tradição que diz “Que o único requisito para ser membro é o desejo de parar de beber”; o passo diz praticamente que o único requisito para alcançar a sanidade é confiar nas ações de um poder superior a nós mesmos, seja ele qual for.
Nos dois primeiros passos, admitimos nossa impotência, viemos a acreditar que um Poder Superior pode devolver-nos a sanidade e, agora, precisamos decidir entregar nossa vontade e nossas vidas a seus cuidados. Não tomaremos essa decisão só uma vez, mas todos os dias, muitas vezes por dia. A minha maior dificuldade nesse Passo foi entender que a entrega da vontade e da vida não é feita de uma vez só, tipo um passe de mágica “toma, é sua”. Não, não é isso. Nenhum de nossos passos é feito uma só vez e pronto. Nada disso, os passos são um modo de vida e o Terceiro Passo não é diferente. Decidir escolher a vontade de Deus para nós é um modo de vida, é uma escolha. O Terceiro Passo é acima de tudo confiança, mas não uma confiança cega, mas sim uma confiança esclarecida, clara, evidente. Mas confiança não se consegue 100% instantaneamente; confiança se adquire com o tempo, com as experimentações, com as evidências. Um início às vezes tímido pode nos levar a grande desenvoltura na prática desse passo. Como exemplo, podemos tomar uma criança ao começar a andar. Inicialmente ela engatinha meio assustada, depois ganha confiança e se coloca de pé, mais à frente cambaleia, cai, machuca, ergue novamente e…pronto, já caminha sozinha, sem ajuda externa. O que a fez conseguir isso? Confiança. E como ela adquiriu essa confiança? Treinando, caindo, levantando, recomeçando, testando, acreditando que pode. O mesmo acontece com a prática do Terceiro Passo: iniciamos timidamente, depois ganhamos confiança e seguimos em frente, tal como um corredor de maratona prestes a vencer uma prova. Cabeça erguida, satisfação pela vitória pessoal, talvez até sinta algumas dores ou incômodos, mas está ciente que isso também faz parte do desfecho final. Ás vezes, acontece um tombo, mas se levanta e segue em frente. A confiança o faz tomar essa decisão: ir em frente. A prática desse passo também nos traz confiança; quando somos atormentados por alguém ou alguma coisa, respiramos profundamente e vamos em frente.
Se quisermos ser bem sucedidos na prática dos passos precisamos estar preparados para entregar aos cuidados de Deus toda a nossa vontade e todas as partes de nossa vida. Somente quando realmente estivermos capacitados a aceitar esse fato, a nossa viagem rumo à sanidade terá tido início. Note-se que eu disse a palavra início e é isso mesmo, pois é aqui no Terceiro Passo que praticamente começamos o trabalho de recuperação e por isso esse passo é considerado a pedra angular que segura todos os outros. Sem esse tipo de aceitação do Terceiro Passo não iremos muito longe.
Alguns obstáculos mentais surgem quando deparamos com o passo e um deles é pensarmos que estamos perdendo a nossa identidade, o nosso livre arbítrio em relação às escolhas que a vida nos oferece. Podemos achar que perdemos tudo, que perdemos o controle de tudo e nos assustamos com isso. Na realidade queremos controlar tudo e quando o passo nos diz para entregar a vida e a vontade nos assustamos e nos rebelamos. Esse é um fato real que nos paralisa. Mas não podemos ficar parados o tempo todo na encruzilhada do Terceiro Passo. A vida, nossa maior mestra, nos impele a praticá-lo, Talvez os traços herdados de nossa infância quando tentamos prender a atenção e cuidar das pessoas a nossa volta para que eles não nos abandonassem tenha reforçado em nós uma porção de tendências indesejáveis, tais como controlar, vigiar e um excessivo senso de responsabilidade. As condições em que crescemos muitas vezes nos impediram de confiar em Deus. Talvez nossas orações tenham ficado sem resposta e não conseguimos imaginar como um Deus podia ser tão cruel para nós. O Terceiro Passo é uma oportunidade que o programa nos dá de realinharmos com Deus, talvez e bem provável um outro Deus, agora da minha concepção e não aquele Deus que me foi imposto e sobre o qual eu não tive nenhuma oportunidade de participação na sua conceituação Aqui vale um parêntesis para dizer que o programa dos Doze Passos não é um programa religioso na acepção da palavra, ele é um programa prático para facilitar a nossa recuperação. Alcoólicos Anônimos teve início num contexto em que o pragmatismo era um modelo usado e pragmatismo nada mais é que fazer uso daquilo que dá resultado prático. Experimentação de erros e acertos, aquilo que deu certo continuamos a usar, aquilo que não deu descartamos. É assim a prática sugerida de Deus em nossa vida. Um Deus que cuida dos resultados e por isso mesmo ele é muito prático. Posso escolher o que quiser e o que julgar melhor para mim em determinado momento, mas o resultado não é necessariamente aquele que eu imagino. O resultado é sempre de Deus, cabe a nós aceitarmos.
É com a criação desse novo Deus que tenho galgado os passos em minha vida, um dia de cada vez. Mas não tem sido fácil descartar aquele outro Deus, porque mesmo ele não tendo funcionado, ele está impregnado dentro de mim, afinal foram anos vivendo sob a sua imagem. Logo, a prática do Terceiro Passo para mim é uma oportunidade que estou tendo de substituir aquele Deus que não deu certo por um outro da minha concepção. É um trabalho de construção diária, como todo o programa de A.A. É trabalho de construção a quatro mãos: eu vou construindo Deus e ele vai me moldando à sua maneira.
Durante a minha vivência no programa, alguns depoimentos a respeito desse passo me marcaram muito e aqui abro mais um parêntesis para citar dois deles: o primeiro é de uma companheira que dizia não concordar com o Deus das religiões. E, de acordo com a proposta do Passo, ela atribuiu uma Deusa como sendo a sua divindade. Pois bem, numa determinada reunião, ela usou o termo Deusa como ela a concebia e foi ridicularizada por todos que estavam no grupo. Ao que ela reagiu, em prantos, dizendo: Será que eu vou ter que continuar a aceitar um Deus de segunda mão como antes? Será que vou ter que aceitar o Deus de vocês? Será que não posso ter a minha própria concepção de Deus? Não, meus companheiros, continuou ela, não é isso que diz o Terceiro Passo. O Terceiro Passo me dá inteira liberdade para conceber o meu Deus, do meu modo e do meu jeito.
Graças a sua Deusa, essa companheira não saiu do grupo ou voltou a beber quando foi ridicularizada. É esse o cuidado que devemos ter, não é o meu Deus que vai funcionar para o outro e sim o Deus dele que vai funcionar para ele. Lembram-se quando o Dr. Silkworth advertiu para Bill: Não adianta ficar pregando para eles, Bill… Pois é, o programa é individual, o Deus de minha concepção também é individual…
No livro Viemos a Acreditar, tem um depoimento sob o título “Uma filosofia prática” em que o seu autor diz ser ateu e por isso mesmo teve muita dificuldade em entender e praticar o Terceiro Passo. Devido a um grande problema surgido em seu emprego passava pela sua cabeça pedir demissão e sair da cidade a qual morava. O padrinho dele em A.A. sugeriu para ele que trabalhasse com afinco por mais um determinado tempo e não preocupasse com os resultados. Pois bem, assim ele o fez e depois de um ano percebeu que teve duas promoções e todos os seus relacionamentos melhoraram muito. Ele, a partir daí, passou a entender o Terceiro Passo como sendo a prática da não preocupação. Fazer e não preocupar, os resultados seriam independentes da vontade dele. Ele pode até não gostar dos resultados, discordar deles, mas por mais que ele resista, os resultados são estes que estão aí. A partir desse belíssimo texto, passei a me observar. Hoje quando minha relação com Deus está bem, percebo claramente que não estou preocupado com nada, porque confio. Confiança é a palavra que define o Terceiro Passo para mim e se confio em uma força superior a mim mesmo, não tenho espaço para preocupar. Esse depoimento tem guiado a minha relação com Deus e com minha vida. Quando começo a enveredar por caminhos da autopiedade e da preocupação me lembro dele e retorno ao caminho. A intensidade com que estou preocupado com o futuro ou, pior, preocupado com o que aconteceu no passado e me perco tentando fazer o impossível que é reescrever a história, serve para mim como indicador de minha prática de Deus em minha vida e se estou me afastando dele, como não raro acontece, respiro fundo e tento voltar a aquele princípio de orar silenciosamente e pedir: “Meu Deus me ajude a voltar a confiar em Ti, pois estou me perdendo pelo caminho de minhas imaginações e atitudes negativas”. Nem sempre essa retomada é imediata, mas se insisto e persisto ela acontece e isso tem sido meu modo de praticar essa confiança em um novo Deus que, até aqui, tem me dado bons resultados.
O Terceiro Passo, portanto me proporciona o entendimento de Deus de uma outra forma. Não se trata mais daquele Deus vingativo julgador ou seja lá o que me foi passado, mas sim de um Deus que funciona quando as coisas vão mal, que eu posso realmente acreditar nele porque ele é todo justiça e amor. Não é mais aquele Deus que se parece com meus pais, autoritários, dedo em riste, isso não pode, aquilo também não; também não é aquele Deus doentio das religiões e igrejas, como eu estudei; nem um Deus a minha semelhança, um fardo de medo e incapacidade. Deus é Deus. Não como meu pai, nem minha mãe, nem minha igreja ou eu mesmo. Ele está acima disso tudo, pois se assim não fosse, eu não poderia confiar a Ele minha vida e minha vontade. É assim a minha concepção de Deus hoje: um Deus que funciona que é justiça e que eu posso e devo discordar dele o quanto eu quiser e a hora que quiser, mas tenho que aceitar que a minha vida e minha vontade está em suas mãos, pois assim eu decidi.
O divino, o sagrado, pode ganhar muitos nomes. Pode ser Poder Superior, pode ser Deus, pode ser Deuses, Deusa, pode ser uma vibração ou uma iluminação. Independentemente de como o denominamos, há algo que reconhecemos como transcendente que ultrapassa a coisificação do mundo e a materialidade da vida, que faz com que haja importância em tudo que existe. Desse ponto de vista, não basta que eu me conecte com os outros ou com a natureza. Preciso fazer uma incursão no interior de mim mesmo em busca da vida que vibra em mim e da fonte dessa vida. É essa fonte que posso até chamar de Deus como eu O concebo. A conexão com essa fonte é aquilo que os gregos chamavam de “sympatheia”, que significa simpatia. Trata-se de buscar uma relação simpática com o divino. E o Terceiro Passo é o início dessa relação que irá se desenvolver nos demais passos.

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