GRUPOS DE A.A.
Dr. Laís Marques da Silva.
Ex-Custódio e Presidente da JUNAAB.
Temos que buscar, não no grupo, mas sim no que acontece dentro do grupo, os fundamentos de tão dramática transformação que ocorre no decurso do processo de recuperação. O que importa é conhecer a natureza desse processo que leva à liberação de poderosas fontes de energia e tornam possível mudança tão radical na vida dos alcoólicos e que também resultam numa profunda mudança no self. O grupo de A.A., em si, é uma estrutura simples, singela. O que vemos é apenas uma sala sem decorações ou qualquer outra característica que a distinga, a não ser a existência de alguns quadros com referências à Irmandade e a exposição dos Três Legados que dão base e fundamento a todo o admirável processo de recuperação. Tudo o mais se resume em uma mesa e cadeiras.
Assim, inexistem obras de arte, imagens, tapetes, música ambiental, símbolos, mármores, esculturas, paramentos, etc. Lá está apenas o indispensável para acolher alcoólicos em recuperação e dar condições para a realização de uma reunião. Não podendo identificar qualquer materialidade que pudesse dar suporte a tão surpreendente e profunda recuperação que ocorre nos membros do grupo, torna-se oportuno lembrar as palavras de Saint Exupery, no Pequeno Príncipe: “É com o coração que vemos corretamente. O essencial é invisível aos olhos”. Assim fica aberto o caminho para o entendimento, pelo menos parcial, do que dá fundamento à construção de seres humanos, à ocorrência do milagre.
1- Na forma de ritos de abertura.
Nos grupos, as reuniões se iniciam com práticas de abertura, que separam o tempo destinado à reunião, do tempo livre. Assim, após um momento de silêncio, é feita a Oração da Serenidade e são lidos alguns trechos da literatura de A.A. que declaram a condição comum das pessoas ali presentes, o seu problema compartilhado, o alcoolismo. A separação dos tempos é importante, pois se passa para uma outra realidade para uma outra dinâmica.
Cada reunião é um evento social único e nunca baseado no que aconteceu em alguma reunião prévia e nem há qualquer tipo de compromisso em relação a futuras reuniões. O que em uma reunião acontece é próprio daquela reunião. Os membros identificam-se naturalmente e o que importa é a espontaneidade e a necessidade de comunicar a experiência pessoal. A continuidade das reuniões fica por conta da repetição da agenda de reuniões, que usualmente permanece a mesma.
2- Eu sou um alcoólatra.
Os que usam a palavra, habitualmente, iniciam os seus depoimentos dizendo: “eu sou um alcoólatra em recuperação e hoje não bebi pela graça do Poder Superior e a ajuda de vocês”. Assim, ao iniciar, reiteram uma parte do que é dito na abertura e se reconhecem como sendo alcoólicos em recuperação. A fundamental admissão dá início à recuperação e faz parte do processo de superar a negação que o alcoólico na ativa tem em relação aos seus problemas com o álcool. Por outro lado, a identificação pessoal, a declaração aberta de ser um alcoólico, faz com que o A.A. não necessite de critérios objetivos para fazer diagnósticos, porquanto é o próprio reconhecimento da impotência diante do álcool, que afasta a necessidade da aplicação de métodos codificados de diagnóstico. Isso muda radicalmente a atitude mental que o alcoólatra tem em relação ao seu problema. Passa a aceitar a realidade e não mais continua a negá-la.
A condição de ser um alcoólico é tão básica que supera as diferenças individuais e sociais. Passa a não importar a profissão, o nível cultural, social e econômico e nem mesmo o nome, de onde veio, para onde vai, ou onde reside o companheiro. É a identificação de iguais, que mutuamente reconhecem que são torturados pelo mesmo demônio, que dá suporte para a condição de igualdade, diante do problema do alcoolismo, entre os membros dos grupos. Por outro lado, os grupos não estão interessados nas causas do alcoolismo e, portanto, participar do programa de A.A. é uma realização conjunta, de iguais. A auto-identificação dá fundamento à Irmandade de Alcoólicos Anônimos.
3- A recuperação é possível.
É possível parar de beber. O alcoólatra, que chega ao grupo, encontra pessoas que têm os mesmos problemas, que sofreram as mesmas consequências do alcoolismo e que estão limpas e bem vestidas, que estão bem e alegres, que estão sóbrios. O que sempre parecera ser impossível alcançar, parar de beber e se recuperar, é visto como sendo possível. Portanto, existe um caminho, uma saída para o problema. Surge a esperança, e não é possível dar início ao processo de recuperação sem ela.
4- Ser humano que tem valor.
Ao entrar em um grupo, ao ser bem recebido, o alcoólico tem a oportunidade de falar e, mais ainda, de ser ouvido e não apenas escutado. É acolhido como irmão, em clima cordial, o que o faz crescer a sua autoestima. São recebidos e tratados como seres humanos, como pessoas que têm valor e que apenas são portadores de uma doença que, embora não seja possível curar, podem deter, superar. O recém-chegado ouve que é a pessoa mais importante daquela reunião. E não é hipocrisia, pois que ele lembra aos que lá estão, sóbrios e bem, que a doença continua existindo e que é daquela maneira deplorável que irão ficar se pensarem que já podem beber.
5- Isolamento e comunicação.
O isolamento é característico do alcoólico na ativa. Com o tempo, ele perde a comunicação com os que estão à sua volta em função do alcoolismo e da consequente perda de referenciais, valores e prioridades. Mas o ser humano é um ser social e que se realiza e cresce no convívio com os outros. A troca de interiores os enriquece mutuamente e, por isso, a comunicação é indispensável à vida de todos os seres humanos e, em especial, a dos alcoólicos.
No grupo, o alcoólico encontra o espaço necessário e indispensável para reiniciar a comunicação com outros seres humanos porque, nele, está imerso num silêncio respeitoso e recebe uma atenção que transmite ao alcoólico que faz o seu depoimento a mensagem de que ele tem valor e que por isso é ouvido atentamente. A volta da comunicação cria condições para que ocorra um enorme progresso nas relações com os outros, para uma mudança de comportamento.
6- Pertencer. Ter raízes.
Todas as pessoas necessitam de um certo grau de integração com o ambiente social em que vivem, pois que têm necessidade de pertencer. Participar e realizar-se como ser humano no convívio com os outros é essencial para a estabilidade emocional. Mas o alcoólico, no período da ativa, vai perdendo raízes ao longo do tempo. Freqüentemente, não mais pertence a um clube, não freqüenta mais um curso e, muitas vezes, perde o emprego e o convívio com seus familiares. Perde amigos. Ou seja, em graus variáveis, ocorrem perdas significativas e as raízes vão desaparecendo e observamos, com freqüência, que o que resta são os amigos de bar e os mendigos, moradores de rua. O sofrimento é atroz. No entanto, ocorre que as portas dos grupos são muitas e estão abertas, sem qualquer restrição, para todos os que queiram parar de beber. Também estão abertos os braços e os corações dos membros dos grupos para acolher a todos os que desejarem parar de beber. Nos grupos, ouve-se dizer que se o seu problema é parar de beber, o problema e nosso, dos membros do grupo e do próprio alcoólico, e se o seu problema é beber, o problema é seu. Se decidem entrar para um grupo, começam a pertencer, a ter raízes. É como se ligassem a sua tomada na fonte de energia do mundo.
7- Não há julgamento. Cada um fala, apenas, de si.
Cada membro do grupo oferece, ao depor, as suas experiências pessoais, dentro de um ambiente em que não se faz qualquer comentário em relação a depoimentos anteriormente realizados e nem mesmo ao que está em curso. Não se fazem julgamentos. Nenhum depoimento é interrompido e, por isso, são criadas condições para que eles sejam feitos livremente. Acresce que, como todos os presentes tiveram experiências semelhantes e, das experiências que não tiveram, já ouviram falar em depoimentos feitos por outros alcoólicos, não existe qualquer reação visível por parte dos membros dos grupos que ouvem atentamente e em silêncio respeitoso. Eles não se escandalizam, não há uma reação do tipo: como você foi capaz de? Essa atitude, por parte dos grupos, poderia dar ao depoente a falsa impressão de indiferença diante dos fatos que são relatados. No entanto, ela é fundamental para que aquele que faz o seu depoimento possa abrir irrestritamente o seu coração. A autonomia de quem faz o depoimento é irrestrita e é importante notar que não existe a necessidade de ser aprovado pelos membros do grupo. Ninguém pergunta sequer de onde o depoente veio e para onde está indo. Não há retorno em relação ao depoimento que um membro faz.
8- Anonimato.
É de importância fundamental para preservar o alcoólico em relação tanto à ocorrência de preconceitos quanto ao conteúdo, em si, do seu depoimento. Outro aspecto que deve ser considerado é que o anonimato concorre para tornar seguro o ambiente do grupo, em que as guardas podem ser baixadas e também as defesas naturais, indispensáveis para que um membro do grupo possa fazer o seu depoimento com verdade, o único que, e só dessa maneira, contribui para a sua recuperação. Isso representa uma radical mudança de atitude em relação ao tempo do alcoolismo ativo em que predominava a manipulação, a racionalização e, sobretudo, a negação. Outro aspecto, de igual importância, é que o anonimato previne o crescimento do ego, pois que, estando sóbrio e tendo a seu favor a grande conquista, poderia ocorrer o aparecimento dos “que entendem de alcoolismo e de como se sai dele”, tentados, então, a grandes exibições. Mas ocorre que a humildade é a primeira condição para se consolidar vitória tão importante, para alcançar a serenidade e, aí, o anonimato é o compromisso salvador que leva a aceitar que os “princípios estão acima das personalidades”, pensamento este que é freqüentemente repetido nas salas de A.A.. O anonimato é uma conquista e leva a uma profunda e radical mudança de comportamento.
9- Troca de experiências, forças e esperanças.
O ambiente do grupo, com as características já descritas, torna-se o local próprio para a troca de experiências, para o desenvolvimento de atitudes corajosas e para uma abertura que aponta para um futuro melhor, para ter esperança.
10- Ser e ter.
A Irmandade de Alcoólicos Anônimos fez opção pela pobreza. Nela, se quer ser e não ter. Como não há limites para a vontade de possuir mais, o desejo de ter mais leva à ganância, ao egoísmo e ao individualismo. A cobiça leva ao antagonismo entre os seres humanos. No grupo, a atenção não está voltada para ter, mas para o alcoólico que ainda sofre. Não está voltada para as coisas, mas para as pessoas, para o ser humano. Em A.A., a busca é por ser digno, ser honesto, ser fraterno, ser bons e amáveis companheiros, ser bons amigos, ser bons pais, ser bons filhos, ser e ser gente.
Os comportamentos, as maneiras de sentir, pensar e agir, na sobriedade, são profundamente diferente daquelas que predominavam quando os companheiros estavam no alcoolismo ativo. Há uma diferença sensível entre as pessoas que vivem no modo ter e as pessoas que vivem no modo ser, esse sim, que induz a um relacionamento amoroso e pacífico. Ser implica em atividade, renovação, criatividade. É mudança, é crescimento. É vida, é processo que leva a uma mudança interior e, conseqüentemente, a uma profunda mudança de comportamento.
11- O alcoólico e não o alcoolismo.
Toda a Irmandade está voltada para o alcoólico e por isso não faz estatística e nem se dedica a estudar o alcoolismo. O que interessa é o ser humano que sofre de uma condição de alto poder de destruição, que é o alcoolismo. Ela também não faz pesquisa de qualquer tipo, pois isso poderia implicar em submeter os seus membros a processo de estudo e pesquisa. Em A.A. ninguém é submetido a nada. A liberdade pessoal é respeitada, no máximo da sua dimensão.
12- Identifica.
Não são consideradas as diferenças sociais: econômicas, culturais, religiosas, etc. Ou seja, as categorias ou estratos dos membros que compõem os grupos não importam. O A.A. não propriamente iguala mas, sobretudo, irmana. Rótulos não são considerados.
Estando voltados para o seu problema comum, que não é pequeno, resulta que os membros do grupo convivem num ambiente formado por pessoas que se identificam profundamente em torno do seu grave problema comum, o que ameniza as diferenças sociais, dilui as categorias e os estratos existentes na sociedade. Resulta que todos ficam irmanados e não são valorizados os títulos, que reduzem a dimensão humana. Mas nesse mesmo ambiente, cada um mantém, preserva, a sua individualidade, não importando o papel que desempenhe na sociedade. Freqüentemente, os membros não sabem nada a esse respeito. O que importa é o problema comum, o alcoolismo.
13- Inclui, não exclui.
Não há qualquer formalidade para o ingresso de um alcoólico em um grupo. Nada é exigido como condição de entrada. Nem mesmo que esteja limpo ou sóbrio. Nem o nome, nem de onde veio, nem o que fez e o que faz, nem para onde vai. Nada, simplesmente.
A decisão de incluir, sem restrições, é um enorme desafio, que exige muita coragem da parte dos companheiros que compõem os grupos, e também que seus membros estejam bem estruturados, que se mantenham num crescimento contínuo por meio da prática do programa de recuperação para que possam estar em condições de receber pessoas profundamente desequilibradas, desestruturadas, doentes. Acresce ainda que, como não há dogmas em A.A., nada há o que impor, sendo que o programa é apenas sugerido ao recém-chegado. Não há nenhum outro agrupamento humano com estas características.
14- Não há código disciplinar.
Ninguém pode ser punido ou excluído do grupo, a despeito do que fale ou faça. Esse fato se constitui num desafio assombroso e exige um alto grau de aceitação, de compreensão, de tolerância e de amor ao próximo. Não há nada igual sobre a Terra, onde todas as instituições têm os seus estatutos, normas, convenções, etc., ou seja, um conjunto de normas e punições. É o Deus amoroso que reina e não o que julga e castiga. Não há juízo e, muito menos, juízo final.
15- Evite o primeiro gole. Só por hoje.
Não seria possível, para os alcoólicos que chegam aos grupos, fazer promessas e assumir compromissos para toda a vida. Seria pesado demais para qualquer pessoa e, especialmente, para eles. O objetivo de ficar e se manter sóbrio é alcançado pouco a pouco, um dia de cada vez. Como foi ensinado há milênios, “a cada dia bastam as suas tribulações”. Mais do que isso, só é preciso estar atento ao primeiro gole, nada mais, e num segundo momento, assumir que isso é só por hoje.
16- Direito de participação.
Como não há estratos e nem hierarquia, o direito de participação assegura que todos, indistintamente, possam participar das atividades, de todos os serviços necessários à manutenção do grupo e indispensáveis para ter as portas abertas, além das atividades da própria Irmandade de Alcoólicos Anônimos, como um todo e a nível mundial. Mas participar significa conviver, aceitar o próximo, harmonizar-se com as pessoas, aceitar objetivos e irmanar-se com os outros membros do grupo, com todos os que formam essa tão alargada forma de associação humana. Tudo isso leva a uma profunda mudança comportamental, indispensável à integração na grande comunidade dos humanos. Participar das atividades do grupo e da Irmandade de A.A., como um todo, significa estar no caminho da reinserção, do convívio dos humanos.
17- Serviço, instrumentalização do amor ao próximo.
Irmanados em torno de propósitos comuns e tendo como objetivo estar em condições de estender a mão aos que ainda sofrem nas garras do alcoolismo, o serviço concorre para uma mudança radical de comportamento. O alcoólico sai de si, deixa de ser o centro, esquece momentaneamente os seus problemas para se dedicar ao próximo. O ideal superior, livremente escolhido e assumido, de manter as portas do grupo abertas para receber os que sofrem no alcoolismo e para levar a eles a mensagem de A.A. faz com que os membros do grupo cooperem entre si. Por outro lado, isso leva ao desenvolvimento de um clima de entendimento e harmonia, e resulta que todos se tornam mais sociáveis. Era o que não acontecia nos tempos de ativa. Quem coopera aprende a amar o próximo.
Ao cooperar, aceita o próximo, valoriza-o e aprende a amá-lo como irmão. Caminha para a solidariedade. Ocorre, como decorrência, uma profunda modificação nos interesses e na conduta de cada um dos membros do grupo. Uma notável mudança comportamental.
18- Responsabilidade auto-atribuída.
O assumir o ideal maior de apoiar o grupo, de levar a mensagem a quem ainda sofre e de manter as portas abertas para receber o alcoólico que chega, coloca a Irmandade de A.A. em ação, gera o imperativo de responder às necessidades, isso é, conduz à responsabilidade. Todos assumem os serviços por se entenderem responsáveis, e daí resulta a fundamental auto-atribuição de responsabilidade. Se ela fosse, de algum modo, imposta, poderia ser rejeitada ou não cumprida. Mas, como é auto-atribuída, é plenamente aceita e os serviços são realizados, usualmente, à perfeição.
Ao se tornar responsável, o membro do grupo, dentro da possibilidade de cada um e dos limites tradicionalmente aceitos, contribui com os meios materiais necessários para manter o grupo, que passa a ser o centro das decisões e a não depender de ajuda de fora. Ademais, permite que o A.A. permaneça fiel aos seus objetivos e imune a influências externas. Isso dá a todos os seus membros a sensação de poder, de ser capaz – o que concorre para aumentar a autoestima.
O ato da doação torna-se um exercício, um ato de poder feito com as próprias mãos, um ato de vontade. Atua como se fosse uma “ginástica” da responsabilidade que fortalece a vontade e muda o comportamento ao longo do tempo. E responsabilidade era o que o alcoólico na ativa não tinha, pois que frequentemente era acusado de ser um irresponsável por todos à sua volta.
19- Conhece-te a ti mesmo.
Quase todos os passos do programa de recuperação estão voltados para o autoconhecimento. Ao estudar e praticar os passos, o alcoólico evolui, ao longo da vida, em direção ao seu interior, a si mesmo, o que lhe dá valor e grandeza espiritual, além de possibilitar a melhoria da única parte do mundo que depende só dele, que é ele mesmo.
Ao praticar o Programa de Recuperação, o companheiro de A.A. reconhece a sua individualidade, entende que é um ser único na Criação. Caminha na conquista de si mesmo. Encontra sentido para a sua vida. Percebe que é um fim em si mesmo e que tem espírito próprio. Ganha plena consciência de si mesmo, se aceita inteiramente. Caminha para a solução dos seus mais recônditos problemas.
20- Solução das culpas e das vergonhas.
Ao ficar e permanecer sóbrio, o alcoólico tem que enfrentar a sua realidade, a verdade, as conseqüências do seu alcoolismo, lidar com o fato de se sentir incapaz, impotente, inadequado. Culpas e vergonhas surgem de forma contínua. Mas a freqüência aos grupos possibilita desfrutar de um ambiente seguro em que as pessoas compreendem e não julgam, contribuindo isso para a solução, de modo eficaz, dos problemas relacionados às culpas e às vergonhas. O amor ao próximo e o anonimato são outros fatores fundamentais para a solução desses problemas.
Para a solução das culpas e das vergonhas, o alcoólico encontra, em determinados passos do programa, a solução ideal para esse tipo de problemas, sendo que a prática dos passos é facilitada pela solidariedade, pela compreensão e pelo não julgamento por parte dos membros do grupo.
21- Compreensão
Há momentos na vida de um alcoólico em recuperação em que é preciso desabafar, fazer confidências. Mas é neles que observamos que é muito difícil encontrar pessoas que possam merecer a nossa confiança. É preciso encontrar alguém que se disponha a ouvir, estando presente de corpo e alma, que aceite o envolvimento emocional que essas situações produzem e que, sobretudo, sejam capazes de entender.
É ainda é indispensável que o confidente seja reservado e que respeite a pessoa que abre o coração, que seja pessoa de confiança. Mas ainda, é indispensável que compreenda, que tenha compreensão, sem o que não haverá a necessária empatia, uma sintonia fina de afetos, uma troca de interiores. Indispensável ainda é que as relações entre essas pessoas sejam amigáveis e sentimentais e que possam ser ajustadas as diferenças entre elas. Outro aspecto muito importante é que o confidente se exima de fazer julgamentos, que poderiam impedir o desabafo.
Tantos são os requisitos que fica difícil encontrar a pessoa com quem se possa confidenciar. Mas o que se observa é que, no grupo, essa necessidade é satisfeita à saciedade, uma vez que todos compreendem por terem vivido experiências semelhantes, e todas muito dolorosas. São pessoa que não julgam, que mantem o anonimato e que estão abertas ao sofrimento. Que têm amor ao próximo.
22- Ambiente alegre, de pessoas felizes.
Os sofrimentos das pessoas que padecem do alcoolismo são intensos e atingem todas as dimensões do ser humano: física, mental, espiritual, econômica, familiar, etc. e seria previsível encontrar, nos grupos, um clima de intensa dor, clima pesado de tragédia humana. Mas não é assim. As pessoas estão bem, freqüentemente alegres, limpas, vestidas com dignidade e em ambiente de cordialidade.
Isto é muito importante porque, para ouvir os depoimentos, é preciso estar aberto, aceitar sentir dor. Mas ocorre que, usualmente, as pessoas evitam desconfortos e se afastam dos ambientes pesados criados pela dor mas, desse modo, não desenvolvem a compaixão que os enriqueceria.
As pessoas que frequentam os grupos são vitoriosas. Vivem a realidade de que não são pessoas que “não podem beber”, mas que são pessoas que “podem não beber” e isso faz toda a diferença. São pessoas que não estão sendo levadas, sabe-se lá para onde, por um furacão mas que começam a ter poder sobre si mesmas, começam a comandar os seus barcos e a ser donos dos seus destinos. Sabem que não podem tudo, mas que podem muitas coisas. Enquanto que, no passado, eram muitas as perdas, agora são muitos os ganhos. Mas seria previsível encontrar alguma tristeza, pelo menos. No entanto, o sentimento predominante é outro.
As pessoas que estão presentes no grupo têm consciência profunda do sofrimento relatado por quem faz o seu depoimento e o escutam atentamente, em silêncio respeitoso e empático, desejando ajudar o companheiro no sentido de aliviar o seu sofrimento. Acontece que o sentimento que surge nessas condições se chama compaixão, é denso e se desenvolve na sua plenitude no ambiente de silêncio acolhedor do grupo. É a resposta espontânea daquele que está aberto para quem oferece o seu depoimento. Nem a própria dor pesa tanto quanto a que se sente com alguém e por alguém. Essa dor retorna amplificada, posteriormente, por meio das lembranças que surgem do depoimento feito; são ecos que reforçam a compaixão e que, por seu lado, elevam a dimensão humana de quem ouve o depoimento e, na compaixão, despertam para o amor ao próximo, para os sentimentos de fraternidade e de solidariedade. Mas compaixão não é o mesmo que tristeza, não é o mesmo que ter pena. É muito mais que isso. As pessoas se sentem bem nos grupos e são felizes no convívio com iguais.
23- Solidariedade e crise.
Um poderoso sentimento de solidariedade está presente nos grupos, e é estimulado por uma condição relacionada ao alcoolismo, uma situação de crise. Desastres ambientais, com vítimas, despertam solidariedade a nível mundial. Genocídios, como os que recentemente vimos praticados numa escola russa, despertaram solidariedade a nível mundial. Na sala de espera de uma UTI identificamos o sentimento de solidariedade entre os que esperam notícias de melhora dos seus entes queridos. Mas, superados os dolorosos problemas, as pessoas se afastam e os sentimentos nobres gerados pela crise se atenuam ou mesmo desaparecem. Relacionamentos tão próximos são desfeitos.
A doença do alcoolismo é incurável, ou seja, a crise gerada pelo alcoolismo permanece, está sempre presente. Este é o lado bom porque ela continua e também a correspondente resposta, que é o forte sentimento de amor ao próximo, de solidariedade.
24- Novo ciclo de amizades.
Este é mais um aspecto positivo da Irmandade. Todo um conjunto de novos relacionamentos é oferecido aos que chegam aos grupos. Funciona como se fosse um escudo de proteção social formado por pessoas vitoriosas, felizes, equilibradas, de bem consigo e com a vida, que se aceitam e aceitam os outros e que admitem estar dentro de um processo de evolução, de crescimento na sua dimensão humana, o crescimento de pessoas que aprofundam o seu nível de consciência e que se mantêm no processo de recuperação, de crescimento espiritual.
25- Alicerce e construção.
A sobriedade é indispensável para que haja uma evolução favorável no quadro do alcoolismo. Ela é o alicerce, mas não se faz um alicerce para nada. Em cima do alicerce, a sobriedade, vem a serenidade, a evolução, que leva à construção de um novo ser a partir de uma profunda mudança, de uma mudança no “self”, sem o que nada melhora de modo significativo e duradouro. É o que se constrói em cima do alicerce. E esta evolução é oferecida aos que estão nos grupos por meio do programa de recuperação, magnífico programa, também adotado por um grande número de outras formas de associação humanas.